O prisioneiro do Cáucaso – Liev Tolstói

By | June 23, 2022

Um fidalgo servia no Cáucaso como oficial. Chamavam-no Giline. Uma vez, chegou-lhe uma carta de sua mãe dizendo assim: “Estou muito idosa e desejo tornar a ver-te antes de morrer. Vem passar comigo o pouco tempo que me resta de vida. Depois, quando eu estiver morta, poderás voltar a teu serviço. Encontrei-te uma noiva, uma moça que é inteligente, boa e tem alguma fortuna. Pode ser que ela te agrade e, se casares com ela, poderás ficar aqui para sempre”.

Giline teve um momento de hesitação. De fato, sua mãe já não podia durar muito. Se ele não atendesse a esse apelo, talvez nunca mais a visse…

Foi procurar seu coronel, obteve uma licença, despediu-se de seus camaradas, ofereceu a seus soldados quatro barricas de vodca e dispôs-se a partir.

Ora, havia então guerra no Cáucaso. Não se podia andar pelas estradas nem de dia nem à noite. Quando um russo saía das fortalezas, os tártaros matavam-no ou levavam-no para as montanhas. Por isso, todas as semanas, saíam escoltas de fortaleza em fortaleza para assegurar o percurso dos que precisavam viajar.
Era verão. Ao alvorecer, organizou-se a caravana diante da fortaleza que se pôs em marcha com os primeiros raios do sol. Giline ia a cavalo e uma carriola levava suas bagagens. Mas o grupo ia tão lentamente que ele se impacientou: “Meu cavalo é dos melhores — pensou ele. — Posso muito bem ir sozinho. Se encontrar alguma patrulha tártara, não me será difícil distanciá- la.”

Deteve-se, hesitante. Kosta, um outro oficial, homem gordo, pesado e vermelho, tivera, ao que parece, o mesmo pensamento e aproximou-se.

– Queres tentar a viagem sozinho? Se o queres, vou contigo.

– Vamos — disse Giline resolutamente.

E partiram a trote largo, de olhar alerta, observando a planície que se estendia imensa em torno deles. Mas, ao fim de uma hora, a estepe terminou. A estrada metia-se entre duas montanhas.

– Aqui é que é preciso ter cuidado — disse Giline. — Eu vou subir um pouco para ver se não há emboscada preparada.

Seu cavalo era um animal de raça. Subiu como um gamo a áspera encosta e, mal chegando ao alto de um cômoro, o oficial viu, a cerca de mil metros, uns trinta tártaros a cavalo. Quis recuar, mas os tártaros já o tinham visto e correram em seu encalço. Giline lançou sua montaria pelo declive, bradando a Kosta:

– Alerta! Alerta!

Kosta perdeu a cabeça e, em vez de fugir, saltou do cavalo para se abrigar atrás dele, com a louca ideia de fazer frente aos tártaros com uma só espingarda. Giline lançou seu cavalo a galope em direção à planície na expectativa de alcançar os soldados.

Mas seis tártaros surgiram do outro lado do monte e galoparam para cortar-lhe o caminho.

Era o desastre irremediável. Antes que pudesse refletir, Giline viu-te cercado. Tirou o sabre e precipitou-se para o inimigo mais próximo, um gigante com grande barba ruiva. Mas os outros fizerem fogo e as balas atingiram seu cavalo, que caiu quase de súbito, prendendo-lhe uma perna.

Seis braços logo o prenderam. Ele tentou resistir ainda, mas os tártaros bateram-lhe com as coronhas das carabinas e ele perdeu os sentidos.

Quando voltou a si, estava amarrado à garupa do homem de barba ruiva, com o rosto encostado a suas costas robustas.

Caminharam todo o resto do dia e parte da noite para chegar afinal a um acampamento no meio da montanha.

Durante três dias, deixaram-no sozinho em uma choça infecta onde lhe atiravam alimentos grosseiros como a um cão. Apenas por duas vezes ele teve uma visita piedosa. Uma menina de dez a doze anos, vestida e ornada como um ídolo, com o pescoço carregado de colares multicores, veio vê-lo e ficou longas horas a seu lado.

Falava um pouco de russo e, como Giline se queixava de fome, trouxe alguns bolos de milho que, em comparação com o regime a que estava submetido, pareceram deliciosos.

Depois, informou-se. Ela se chamava Dinah e era filha de Abdul Mural, o chefe daquele bando tártaro. Essas visitas foram o único consolo trazido a Giline em sua infecta prisão. Por fim, uma noite vieram buscá-lo e o levaram à presença do homem ruivo, que ele soube tratar-se de Abdul Mural.

O chefe só falava tártaro e, cercado por seus principais auxiliares, ordenou ao intérprete da tribo que transmitisse suas ordens: ele tinha que escrever à sua família pedindo três mil rublos para seu resgate.

– Não — disse Giline, resolutamente. — Eu não sou rico. Minha mãe não poderia pagar essa quantia. O máximo que poderá dar é um resgate de quinhentos rublos.

– É pouco — declarou o intérprete. — O chefe diz que, se não escreveres pedindo três mil rublos, mandará chicotear-te.

Mas Giline sabia como se deve falar com tártaros. Sabia que mostrar receio diante deles era pior.

Ergueu-se e disse, com ar furioso:

– E tu, diz a teu chefe que, se me castigar, não darei nem um copeque.

Poderá chicotear-me ou matar-me, mas não há de ter coisa alguma.

O intérprete traduziu e o chefe discutiu por algum tempo com seus tenentes. Depois, voltou-se para Giline.

– Uruse Dgiquite (rapaz valente) — disse ele em sua língua. — Dá-me mil rublos.

– Quinhentos rublos; nem um mais. Nem que me matem.

O chefe hesitou um pouco, depois deu uma ordem. O intérprete saiu e não tardou a voltar trazendo Kosta, esfarrapado e com os pés em sangue.

– Aí está — disse o chefe. — A este exigi cinco mil rublos e ele já es- creveu à sua família.

– Ele é rico; eu não sou.

O chefe abriu uma caixa. Tirou umas folhas de papel, pena, tinta, pôs tudo diante dele e disse:

– Escreve.

Era a aceitação.

Giline aproveitou a situação.

– Escreverei — disse ele. — Mas hás de dar roupas decentes a mim e a meu companheiro, tirar o toro de madeira que nos acorrentaram às pernas e deixar-nos juntos.

O chefe desatou a rir e concordou, menos com relação ao toro de madeira, que — declarou — apenas seria retirado à noite.

Giline, então, escreveu a carta, mas pôs-lhe um endereço falso, pensando: “Hei de arranjar um meio de fugir e minha mãe não precisará vender nossa casinha para me libertar.”

Mal se viu fechado em companhia de Kosta, expôs-lhe seu plano. Mas o infeliz estava com os pés tão feridos que tiveram de esperar quase um mês in- teiro para que ele melhorasse. Por fim, decidiram-se. Giline fez no fundo da choça uma abertura bastante larga para que pudessem passar. E, depois de fazer o sinal da cruz, puseram-se em fuga.

Mas, ao fim de uma hora de jornada, os pés de Kosta recomeçaram a sangrar e ele pediu ao companheiro que o abandonasse. Giline, porém, persistiu. Haviam de salvar-se ou perder-se juntos. E por um longo trecho carregou o outro, arquejando de fadiga. Chegando a uma curva onde se iniciava um declive áspero e duro, deteve-se para respirar um pouco e ouviu vozes atrás de si.

Atirou-se com Kosta para dentro de uma moita. Dois tártaros surgiram descendo a ladeira e teriam passado sem vê-los se não viessem cem um cão. O animal descobriu-os pelo faro e denunciou-lhes a presença.

Trazidos de novo ao acampamento de Abdul Mural, sua existência tornou-se horrível. Desta vez não lhes tiraram mais os toros de madeira dos pés e os colocaram não mais em uma choça, mas em um “silo”, uma cova aberta no chão em forma de funil invertido, isto é, com o fundo circular e largo sob uma abertura muito estreita.

Não era possível sair dali senão içado por cordas.

No dia seguinte, Dinah veio ajoelhar-se à beira da cova e contemplou-os com ar de profunda piedade.

– Por que não me salvas? — perguntou-lhe Giline, sem saber o que dizia.

– Eles estão muito zangados contigo — disse a menina. — Muito zangados porque tu fugiste e porque teus irmãos andam por perto.

Seus irmãos? Ela decerto se referia aos soldados russos. Teriam as tropas ganhado terreno a ponto de estar já nos arredores da montanha?

Uma esperança deslumbrante despontou-se em seu coração.

– Dinah… ouve — balbuciou ele com voz suplicante. — Se tens pena de mim… traze-me um pau… O mais comprido que puderes encontrar aí por perto.

A menina afastou-se com ar pensativo e hesitante. Giline deixou-se cair de joelhos e orou com profundo fervor.

Mas teve que esperar muito. Ouvia grande movimento em torno. Patrulhas chegavam e partiam a cada instante. As patas dos cavalos ressoavam pesadamente no chão.

Era já noite escura quando ele sentiu terra cair da borda da fossa sobre sua cabeça. Olhou para cima e viu uma vara que descia lentamente. Era o que Dinah pudera encontrar: um cabo de lança tártara, longa e fina. Mas era bastante sólida. E Giline não era pesado. Despediu-se de Kosta, que não podia acompanhá-lo com os pés informes e doloridos, e agarrou-se à vara, tendo o cuidado de colocá-la o mais a prumo que lhe foi possível, a fim de evitar que ela vergasse.
Mas o peso do toro acorrentado a um de seus pés perturbava-lhe os movimentos e por duas vezes ele caiu sem poder alcançar aborda. Por fim, conseguiu-o, e, retirando a vara, recomendou a Dinah:

– Coloca-a onde a encontraste para que não desconfiem de ti.

Ela afastou-se, arrastando a vara. E Giline, apanhando no chão uma pedra cortante, tentou forçar o cadeado da corrente para se livrar do toro de madeira.

Então, como não convinha perder tempo, pôs-se em marcha, carregando o toro de madeira, a fim de caminhar mais depressa.

Já conhecia o caminho e andou oito verstas, sem hesitar. Mas, consegui- ria alcançar a floresta antes que a lua surgisse?

Atravessou um riacho e chegou às primeiras árvores quando a lua aparecia.

Sentou-se para repousar um pouco e de novo tentou abrir o cadeado. Suas unhas sangraram em vão nessa tentativa. Teve que prosseguir carregando o pesado toro. Era uma canseira tamanha que se tinha de deter a cada dez passos.

Caminhou assim durante toda a noite, tendo encontrado apenas dois tártaros a cavalo. Mas escondeu-se entre a folhagem e não foi visto.

Ao amanhecer, estava quase no limite da floresta.

Espreitou atentamente por entre as árvores e viu uniformes, carabinas.

Eram cossacos que estavam acampados ali, a menos de uma verste.

Mas, junto das árvores, bem perto, viu três tártaros. Eles também o viram e precipitaram-se.

Giline, alucinado, delirante de pavor e esperança, precipitou-se pela encosta gritando:

– Irmãos! Irmãos!

A lembrança das palavras de Dinah fazia-o chamar assim os soldados de sua raça.

Seus gritos foram ouvidos e os cossacos acudiram a galope, obrigando os tártaros a um recuo prudente para a floresta.

Duas horas depois, o comandante da sotnia, informado por Giline, fazia um ataque brusco ao acampamento dos tártaros para libertar Kosta.

*

Quando relatava essa história, Giline concluía:

– Eis por que nunca mais vi minha mãe, nem me casei. Era meu destino.

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