Morte heróica – Charles Baudelaire

By | June 25, 2022

Fanciullo era um bufão admirável, e quase um dos amigos do Príncipe. Mas, para os cômicos de profissão, as coisas sérias têm atrações fatais, e, ainda que possa ser estranho que as idéias de pátria e liberdade tomem conta do cérebro de um histrião, um dia Fanciullo entrou numa conspiração tramada por alguns fidalgos descontentes.

Há, em toda a parte, pessoas de bem para denunciarem ao poder esses indivíduos de humor atrabiliário, que pretendem depor príncipes e operar, sem consultá-la, a desorganização de uma sociedade. Os tais senhores foram presos junto com Fanciullo, e destinados à morte.

Acredito que o Príncipe quase se aborreceu por encontrar, entre os rebeldes, o seu comediante favorito. O Príncipe não era pior ou melhor do que outro qualquer; mas uma sensibilidade excessiva tornava-o, em muitos casos, mais despótico e mais cruel que todos os seus iguais. Amante das artes, e excelente conhecedor da matéria, era ele positivamente insaciável de volúpias. Indiferente aos homens e a moral, verdadeiro artista, não conhecia inimigo perigoso a não ser o tédio, e os extraordinários esforços que fazia para evitar ou vencer esse tirano do mundo lhe haveriam sem dúvida granjeado, da parte de um historiador severo, o epíteto de “monstro”, caso pudesse, nos seus domínios, escrever fosse o que fosse que não tendesse apenas ao prazer, ou à surpresa, uma das mais delicadas formas do prazer. A grande desgraça deste Príncipe foi que ele não teve nunca um teatro bastante amplo para o seu gênio. Há jovens Neros que sufocam em limites demasiado estreitos, e de cujo nome e boa vontade jamais terão conhecimento os séculos vindouros. A esse, dera-lhe a imprevidente Providência faculdades maiores que os seus Estados.

De repente, correu o boato de que o soberano estava disposto a conceder perdão a todos os conjurados; e a origem de tal boato foi o anúncio de um grande espetáculo em que Fanciullo devia representar um dos seus principais e melhores papéis, ao qual assistiriam, segundo se falava, os próprios fidalgos condenados; sinal evidente, acrescentavam os espíritos superficiais, da generosa índole do Príncipe ofendido.

De homem tão instintiva e voluntariamente excêntrico, tudo era lícito esperar, até a virtude, até a clemência, sobretudo se ele chegara a conceber a esperança de nelas encontrar prazeres imprevistos. Mas para aqueles que, tal como eu, haviam logrado penetrar mais longe nas profundezas daquela alma curiosa e doentia, era mil vezes mais provável que o Príncipe quisesse ajuizar o valor do talento cênico de um homem condenado à morte. Queria aproveitar a ocasião para fazer uma experiência psicológica de interesse capital, e verificar até que ponto as faculdades habituais de um artista podiam ser alteradas ou modificadas pela situação extraordinária em que ele se encontrava; demais, quem sabe se não existia em sua alma uma intenção mais ou menos contida de clemência? É um ponto que nunca se pôde esclarecer.

Afinal, chegado o grande dia, aquela pequena corte exibiu todas as suas pompas, e seria difícil imaginar, sem o ter visto, tudo quanto a classe privilegiada de um país modesto, de limitados recursos, pode ostentar de esplendores para uma autêntica solenidade. Aquela era duplamente autêntica: pela magia do luxo estadeado e pelo interesse moral e misterioso que se lhe prendia.

Fanciullo era excelente em papéis mudos ou pouco carregados de palavras, que não raro são os principais nesses dramas de magia, cujo objetivo é representar simbolicamente o mistério da vida. Entrou em cena lépido, com absoluto desembaraço, o que influiu para fortalecer no nobre público a idéia de doçura e perdão.

Quando se diz de um comediante: — “Eis aí um bom comediante” — usa-se uma fórmula da qual se deduz que sob a personagem se deixa adivinhar também o cômico, isto é, a arte, o esforço, a vontade. Ora, se chegasse um comediante a ser, em relação à personagem que lhe cumpre interpretar, o que as melhores estátuas da Antigüidade, miraculosamente animadas, vivas, ambulantes, videntes, seriam em relação a idéia geral e confusa de beleza, isso constituiria, decerto, um caso singular e inesperado. Fanciullo foi, naquela noite, uma perfeita idealização, que não se poderia deixar de supor viva, possível, real. O bufão ia e vinha, ria e chorava, contorcia-se, com uma indestrutível auréola a cingir-lhe a fronte, auréola invisível para todos, mas visível para mim, e na qual mesclavam, em desconcertante amálgama, os esplendores da arte e a glória do Martírio. Não sei por que graça especial, Fanciullo introduzia o sobrenatural e o divino até nas mais extravagantes bufonarias. Minha pena treme, e sobem-me aos olhos lágrimas de uma comoção permanente, enquanto vos procuro descrever aquela inesquecível noite. Fanciullo provava-me, de modo peremptório, irrefutável, que a embriaguez da Arte é a mais apropriada que outra qualquer para velar os terrores do abismo; que o gênio pode representar a comédia à beira do túmulo com uma alegria que impede ver o túmulo — perdido, como está, num paraíso que afasta qualquer idéia de sepultura a destruição.

Todo aquele público, tão embotado e frívolo, de pronto experimentou o domínio onipotente do artista. Ninguém pensou em morte, luto, suplícios. Cada um se entregou, despreocupado, às copiosas volúpias que oferece a contemplação de uma obra-prima de arte. As explosões de alegria e admiração estremeceram reiteradamente as abóbadas do edifício com a energia de um trovão ininterrupto.

Contudo, a um olhar clarividente essa embriaguez não era sem contraste. Sentia-se ele vencido no seu poder de déspota? Humilhado na sua arte de aterrorizar os corações e entorpecer os espíritos? Frustrado de esperanças e ludibriado nas suas previsões? Estas conjecturas, não exatamente justificadas, mas não de todo injustificáveis, atravessaram-me o espírito enquanto eu contemplava o semblante do príncipe, onde uma nova palidez se sobrepunha incessantemente à palidez habitual, como a neve se sobrepõe à neve. Seus lábios cerravam-se cada vez mais, e seus olhos se iluminavam de um fogo íntimo, semelhante ao do ciúme e do ódio, até quando ele aplaudia às claras os talentos do velho amigo, o estranho bufão, que com tamanha perícia bufoneava a morte. Em dado instante, vi Sua Alteza inclinar-se para um pequeno pajem, que lhe ficava atras, e falar-lhe ao ouvido. A fisionomia maliciosa do lindo menino iluminou-se de um sorriso; em seguida ele deixou, rápido, o camarote, como para desempenhar missão urgente.

Alguns minutos após, um assobio, agudo e prolongado, interrompeu Fanciulo num dos melhores momentos, e dilacerou a um só tempo os ouvidos e os corações. E do ponto da sala de onde irrompera essa inesperada reprovação, um menino se precipitava num corredor com risos abafados.

Fanciullo, abalado, desperto do seu sonho, primeiro fechou os olhos, reabriu-os depois, quase no mesmo instante, desmesuradamente dilatados, logo após abriu a boca, como para um respirar convulsivo, claudicou um pouco para diante, um pouco para trás, e por fim caiu em cheio, morto, sobre o tablado.

Teria na realidade o assobio, rápido como um gládio, frustrado a ação do carrasco? Teria o Príncipe adivinhado toda a homicida eficácia de sua astúcia? É lícito pô-lo em dúvida. Terá ele lamentado o seu querido e inimitável Fanciullo? É doce e legítimo acreditá-lo.

Os fidalgos delinqüentes haviam gozado pela última vez o espetáculo da comédia. Na mesma noite foram riscados da vida.

Desde então, vários truões, justamente apreciados em diferentes países, têm vindo representar perante a corte de ….; nenhum deles, porém, nem sequer chegou a lembrar os maravilhosos talentos de Fanciullo, nem conseguiram alcançar o mesmo favor.

239 Visualizações