Vérotchka – Anton Tchekhov

By | June 27, 2022

Ivan Aleksêievitch Ogniov se recorda de que, naquela noite de agosto, ele abriu ruidosamente a porta de vidro e saiu para o terraço. Ele usava então uma pelerine leve e um chapéu de palha de aba larga, o mesmo que, juntamente com as botas, estava agora atirado embaixo da cama, na poeira. Levava numa das mãos um amarrado de livros e cadernos e, na outra, um bastão grosso e nodoso.

Atrás da porta, iluminando o caminho com um lampião, estava o dono da casa, Kuznetsov, um velho calvo, com uma longa barba branca, vestindo um paletó de fustão branco como a neve. O velho sorria com simpatia e curvava a cabeça.

– Adeus, meu velho! – gritou-lhe Ogniov.

Kuznetsov colocou o lampião sobre a mesinha e saiu para o terraço. Duas sombras estreitas e compridas avançaram pelos degraus em direção aos canteiros de flores, vacilaram e suas cabeças apoiaram-se nos troncos das tílias.

– Adeus e mais uma vez obrigado, meu querido! – disse Ivan Aleksêievitch. – Obrigado por sua cordialidade, seu carinho e afeto… Nunca, enquanto eu viver, vou esquecer sua hospitalidade. O senhor é bondoso, sua filha também, todos aqui são bons, alegres, cordiais… Um pessoal tão formidável, que eu nem sei o que dizer!

Em conseqüência do excesso de sentimentalismo e sob a influência do licor que tinham acabado de tomar, Ogniov falava com uma voz cantante de seminarista e estava tão emocionado que expressava seus sentimentos não tanto por palavras quanto por piscadelas e elevar de ombros. Kuznetsov, que também havia bebido e estava emocionado, aproximou-se do jovem e deu-lhe um beijo.

– Eu me acostumei a vocês como um perdigueiro! – continuou Ogniov. – Quase todo dia eu dava as caras aqui; dormi umas dez vezes, o licor eu bebi tanto que me dá até medo lembrar. Mas o principal, Gavriil Petróvitch, foi sua assistência e ajuda. Se não fosse o senhor, eu teria de ficar até outubro aqui, pelejando com a minha estatística. Por isso vou escrever no prefácio: “É meu dever expressar minha gratidão ao presidente do zemstvo da província de N., por sua amável assistência”. A estatística tem um futuro brilhante! Meus profundos respeitos a Vera Gavrílovna, aos doutores e aos dois pesquisadores, bem como ao seu secretário; transmita-lhes que nunca esquecerei sua ajuda! E agora, chefe, nos abracemos e troquemos os últimos ósculos.

Ogniov beijou novamente o velho e, pesaroso, começou a descer a escada. No último degrau, ele se virou e perguntou:

– Será que nos veremos algum dia?

– Só Deus sabe! – respondeu o velho. – Talvez nunca mais.

– É verdade! Não se consegue convencer o senhor a ir a Píter nem pagando, e eu dificilmente darei com os costados nesta província. Bem, então adeus!

– O senhor poderia deixar os livros aqui! – gritou-lhe Kuznetsov. – Por que tanta vontade de carregar peso? Eu poderia mandar alguém levar para o senhor amanhã.

Mas Ogniov já não podia ouvir e afastava-se rapidamente da casa. Sua alma, aquecida pelo vinho, estava alegre e cálida, mas também triste… Enquanto caminhava, ele pensava que muitas vezes você encontra pessoas na vida e que, infelizmente, desses encontros não fica nada mais do que recordações. Acontece vermos de relance as cegonhas no horizonte, a brisa traz seus gritos triunfais e lamentosos, mas um minuto depois, por mais que você esquadrinhe ansiosamente o azul distante, não verá nem sinal delas, e não ouvirá um som sequer – exatamente assim as pessoas, com seus rostos e falas, passam de relance por nossa vida e se afundam em nosso passado, sem deixar mais do que ínfimos vestígios de lembranças. Vivendo desde a primavera na província de N. e freqüentando quase diariamente a casa dos Kuznetsov, Ivan Aleksêievitch acostumara-se ao velho, à sua filha e aos criados como se fossem sua família, e estudara nos mínimos detalhes toda a casa, a confortável varanda, as curvas das aléias, as silhuetas das árvores contra a cozinha e a casa de banho; porém, assim que ele sair agora pela cancela, tudo isso se tornará uma lembrança e para ele perderá para sempre sua importância real, e dali a um ano ou dois todas essas imagens agradáveis vão ficar embaçadas em sua consciência, no mesmo nível das coisas imaginadas e das fantasias.

“Não existe nada na vida mais caro do que as pessoas!” – pensava o comovido Ogniov, enquanto caminhava pela aléia em direção à cancela. “Não existe nada!”

O jardim estava silencioso e quente. Havia um odor de resedá, tabaco e heliotrópio, que ainda não haviam fenecido nos canteiros. Os espaços entre os arbustos e os troncos das árvores estavam cobertos por uma névoa rala, suave, que se deixava atravessar pela luz da lua, e, algo que ficara muito tempo na memória de Ogniov, flocos de neblina, semelhantes a fantasmas, iam um atrás do outro pela aléia, devagar, porém visíveis aos olhos. A lua estava bem alta no céu, sobre o jardim, e, abaixo dela, em algum ponto a leste, moviam-se algumas manchas transparentes de nuvens. Parecia que o mundo todo era composto apenas de silhuetas negras e sombras brancas a vagar, e Ogniov, observando a névoa naquela noite enluarada de agosto, pensou, talvez pela primeira vez na vida, que estava vendo não a natureza, mas sim uma decoração, onde pirotécnicos inexperientes escondidos atrás dos arbustos, no intuito de iluminar o jardim com fogos-de-bengala brancos, junto com a luz tivessem soltado no ar fumaça branca.

Quando Ogniov se aproximava da cancela do jardim, destacou-se da cerca baixa uma silhueta escura, vindo ao seu encontro:

– Vera Gavrílovna! – alegrou-se ele. – A senhorita está aqui? E eu que a procurei, procurei, queria me despedir… Já estou indo embora… Adeus!

– Mas tão cedo? São onze horas ainda.

– Não, está na hora! Tenho de caminhar cinco verstás e ainda tenho de fazer as malas. Preciso acordar cedo amanhã…

Diante de Ogniov estava a filha de Kuznetsov, Vera, moça de 21 anos, geralmente triste, despreocupada no vestir e interessante. As moças que sonham muito, que passam os dias deitadas preguiçosamente e lêem tudo o que lhes cai nas mãos, que ficam entediadas e tristes, em geral são relaxadas na maneira de se vestir. Àquelas a quem a natureza presenteou com bom gosto e instinto de beleza, esse leve relaxamento nas roupas confere um encanto especial. Pelo menos, ao se recordar mais tarde da graciosa Vérotchka, Ogniov não podia imaginá-la sem a blusa folgada que, ajustada na cintura em pregas profundas, ainda assim não tocava o seu corpo; nem sem a madeixa que caía sobre a testa, escapando dos cabelos levantados, e nem sem aquele xale tecido à mão, com pompons nas beiradas, que à noite, como uma bandeira num dia sem vento, pendia melancolicamente dos ombros da moça e que, durante o dia, ficava jogado no vestíbulo, junto das botas masculinas, ou sobre o baú da sala de jantar onde, sem nenhuma cerimônia, dormia o velho gato. Esse xale e as pregas da blusa transmitiam um ar de liberdade preguiçosa, de vida caseira, de bem-estar. É possível que, pelo fato de que Vera agradava a Ogniov, em cada botão seu, em cada babadinho, ele conseguia enxergar algo morno, aconchegante, ingênuo, algo bom e poético que falta às mulheres falsas, frias e sem sentimento de beleza.

Vérotchka era bem-feita de corpo, tinha um perfil regular e belos cabelos ondulados. Ogniov, que tinha visto poucas mulheres na vida, achava-a uma beldade.

– Estou partindo! – disse ele, despedindo-se dela perto da cancela. – Desculpe alguma coisa! Obrigado por tudo!

Com a mesma voz cantante de seminarista com que ele conversara com o velho e igualmente piscando e levantando os ombros, ele começou a agradecer a Vera pela hospitalidade, carinho e cordialidade.

– Eu escrevi à minha mãe sobre vocês em todas as minhas cartas – disse ele. – Se todos fossem como você e o seu pai, a vida neste mundo seria uma maravilha. Todos aqui são formidáveis. São gente simples, amável, sincera.

– Para onde o senhor vai agora? – perguntou Vera.

– Agora vou para a casa da minha mãe em Oriol; vou ficar lá umas duas semanas e depois vou para Píter trabalhar.

– E depois?

– Depois? Vou passar o inverno todo trabalhando e, na primavera, novamente vou para alguma província coletar material. Bem, seja feliz, viva cem anos…

Desculpe alguma coisa. Não nos veremos mais.

Ogniov inclinou-se e beijou a mão de Vérotchka. Depois, com emoção silenciosa, ajeitou a pelerine, consertou o amarrado de livros, ficou um instante calado e disse:

– Como está espessa a névoa!

– É verdade. O senhor não está esquecendo nada?

– O que poderia ser? Acho que não…

Por alguns segundos Ogniov ficou parado, em silêncio; depois, um pouco sem jeito, virou-se para a cancela e saiu do jardim.

– Espere, vou acompanhá-lo até o nosso bosque – disse Vera, seguindo-o.

Eles caminharam pela estrada. Agora as árvores já não encobriam a amplidão e era possível ver o céu e o que havia ao longe. Como se estivesse coberta por um véu, a natureza se escondia atrás da tênue fumaça translúcida, através da qual alegremente transparecia sua beleza; a bruma mais espessa e branca se acomodava de forma irregular junto aos montes de feno e aos arbustos e vagava em grandes farrapos pela estrada, ficando bem rente à terra, como se não quisesse encobrir a vastidão. Através da névoa, via-se toda a estrada até o bosque, com valas escuras nas laterais, e também as pequenas moitas que cresciam nas valas e impediam os farrapos de bruma de vagarem por ali. A meia verstá da cancela avistava-se a faixa negra do bosque dos Kuznetsov.

“Para que ela veio comigo? Agora será necessário acompanhá-la de volta!” – pensou Ogniov. Contudo, depois de dar uma olhada no perfil de Vera, ele sorriu, carinhoso, e disse:

– Não dá vontade de partir num tempo lindo como este! Está uma verdadeira noite de romance, com luar, silêncio e todos os ingredientes esperados. Sabe de uma coisa, Vera Gavrílovna? Vivo neste mundo há já 29 anos, mas na minha vida não houve um romance sequer. Em toda a vida, nem uma história de amor, de modo que encontros amorosos, aléias, suspiros e beijos, eu conheço só de ouvir falar. Isso não é normal! Se você está na cidade, no seu quarto de pensão, não nota essa lacuna, mas aqui, ao ar livre, ela se faz sentir fortemente… Dá uma certa revolta!

– Mas por que isso lhe acontece?

– Não sei. Talvez durante a vida toda eu não tenha tido tempo, ou pode ser que simplesmente não tivesse oportunidade de conhecer mulheres que… Em geral, conheço pouca gente, pois não vou a parte alguma.

Os jovens caminharam em silêncio uns trinta metros. Ogniov olhava para a cabeça descoberta e para o xale de Vérotchka, e na sua mente ressuscitavam, um após o outro, os dias da primavera e do verão; foi uma época em que, longe do seu cinzento quarto de pensão em Petersburgo, desfrutando do carinho de pessoas boas, junto à natureza e com seu trabalho preferido, ele não tinha tempo de notar que a aurora matutina era substituída pelo crepúsculo, nem como, um após o outro, profetizando o fim do verão, os pássaros paravam de cantar: primeiro os rouxinóis, depois a codorniz, e um pouco mais tarde o codornizão… O tempo voava e nem se notava, o que significa que a vida era boa e fácil… Começou a recordar em voz alta como ele, que não era rico nem acostumado a agitação e pessoas, viera no final de abril para a província de N. esperando encontrar tédio, solidão e indiferença pela estatística, a qual, na sua opinião, ocupava agora o lugar de maior destaque entre as ciências. Ao chegar à cidadezinha de N., numa manhã de abril, hospedou-se na estalagem do velho-crente Riabúkhin, onde, por uma diária de vinte copeques, deram-lhe um quarto limpo e claro, com a condição de que fumasse somente na rua. Após descansar, tendo obtido a informação de quem era o presidente do zemstvo da província, ele imediatamente foi a pé para a casa de Gavriil Petróvitch. Caminhou por quatro verstás de lindos campos e bosques jovens. Sob as nuvens, enchendo os céus de sons argênteos, tremiam as cotovias, e sobre os campos lavrados verdejantes, batendo as asas com segurança e imponência, voavam a toda velocidade as gralhas.

– Meu Deus – admirou-se então Ogniov –, será possível que aqui se respire sempre esse ar, ou esse cheiro é somente hoje, em honra da minha chegada?

Esperando uma recepção seca e oficial, ele entrou na casa dos Kuznetsov com timidez, olhando de soslaio e cofiando a barbicha, envergonhado. A princípio, o velho franziu a testa, sem entender por que esse jovem e sua estatística poderiam necessitar do zemstvo, mas quando Ogniov explicou o que era material estatístico e onde ele era coletado, Gavriil Petróvitch animou-se, começou a sorrir e a olhar com curiosidade infantil os cadernos que o outro trouxera… Naquela mesma noite, Ivan Aleksêievitch já estava sentado à mesa dos Kuznetsov jantando e logo ficou embriagado com o licor forte. Vendo os rostos tranqüilos e os movimentos preguiçosos de seus novos conhecidos, sentiu em todo o seu corpo uma modorra doce e sonolenta, uma vontade de cochilar, espreguiçar e sorrir. Os novos conhecidos o examinaram com benevolência e perguntaram se seus pais eram vivos, quanto ele ganhava por mês e se ia muito ao teatro…

Ogniov recordou suas excursões aos distritos, os piqueniques, as pescarias, a viagem com toda a sociedade local ao mosteiro feminino para ver a superiora Marfa, que presenteou cada visitante com um porta-moedas bordado de miçangas; lembrou-se das acaloradas e infindáveis discussões, tipicamente russas, em que os debatedores, atirando perdigotos uns nos outros, dando murros na mesa e mudando de assunto a todo instante, depois de duas ou três horas de polêmica caíam na risada:

– Só Deus sabe por que nós começamos essa discussão! Começamos indagando pela saúde e terminamos dando pêsames!

– Lembra-se de quando eu, a senhorita e o doutor fomos a cavalo a Chestovo? – perguntou Ivan Aleksêievitch a Vera quando eles se aproximavam do bosque. – Naquele dia nós encontramos um pobre bobo. Eu lhe dei cinco copeques, ele se persignou três vezes e atirou a moeda no campo de centeio. Meu Deus, quantas lembranças vou levar comigo! Se fosse possível juntá-las todas, compactá-las, daria uma boa barrinha de ouro! Não compreendo por que pessoas inteligentes e sensíveis se amontoam nas capitais e não vêm para cá. Será que na Avenida Névski e nos prédios grandes e úmidos há mais espaço e verdade do que aqui? Digo com sinceridade, os prédios com quartos mobiliados, como o meu, recheados de cima a baixo de artistas, cientistas e jornalistas, sempre me pareceram um preconceito.

A uns vinte passos do bosque, atravessando a estrada, havia uma pontezinha com colunas baixas nos cantos, que os Kuznetsov, nos seus passeios, usavam como uma pequena estação de parada. Dali, quem quisesse podia provocar o eco da mata, e dali via-se a estrada desaparecer na escuridão da clareira.

– Bem, aí está a ponte! – disse Ogniov. – Daqui a senhorita deve voltar… Vera parou e tomou fôlego.

– Vamos nos sentar um pouco – disse ela, descansando sobre uma coluna. – Antes da partida, durante as despedidas, geralmente todos se sentam.

Ogniov ajeitou-se perto dela, sobre seu amarrado de livros, e continuou a falar.

Ela ofegava devido à caminhada e olhava não para Ogniov, mas para outro lado, de modo que ele não podia ver o seu rosto.

– De repente nós nos encontramos daqui a uns dez anos – disse ele. – Como vamos estar então? A senhorita já será uma respeitável mãe de família e eu, o autor de alguma respeitável e totalmente inútil coletânea de artigos sobre estatística, grossa, como quarenta mil outras coletâneas. Vamos nos encontrar e recordar o passado… Agora nós sentimos o presente, ele nos preenche e nos preocupa, mas no futuro, quando nos encontrarmos, já não vamos nos lembrar nem o dia, nem o mês, nem mesmo o ano em que nos vimos pela última vez aqui nesta ponte. A senhorita com certeza vai estar diferente… Então, a senhorita vai ficar diferente?

– O quê? – perguntou ela.

– Eu estava lhe perguntando…

– Desculpe, eu não escutei o que o senhor estava dizendo.

Só então Ogniov notou a mudança ocorrida em Vera. Ela estava pálida, ofegante, o tremor de sua respiração transmitia-se às mãos, aos lábios, à cabeça, e do seu cabelo levantado caía sobre a testa não apenas um cacho, como habitualmente, mas dois… Pelo visto, ela evitava olhá-lo diretamente nos olhos e, tentando disfarçar a emoção, ora ajeitava a gola, como se ela estivesse machucando o seu pescoço, ora puxava seu xale vermelho de um ombro para o outro…

– Parece que a senhorita está com frio – disse Ogniov. – Ficar sentado na neblina não faz muito bem à saúde. Deixe-me acompanhá-la nach Hause.

Vera continuava calada.

– O que há com a senhorita? – sorriu Ivan Aleksêievitch. – Está calada, não responde às perguntas. Está indisposta ou zangada? Hein?

Vera comprimiu fortemente com a palma da mão o lado do rosto que estava voltado para Ogniov e logo depois bruscamente a retirou.

– É uma situação terrível… – sussurrou ela com uma expressão de intenso sofrimento. – É terrível!

– O que há de terrível? – perguntou Ogniov, erguendo os ombros e não escondendo seu espanto. – Que aconteceu?

Ainda respirando com dificuldade e com tremor nos ombros, Vera ficou de costas para ele, durante meio minuto olhou para o céu e disse:

– Preciso conversar com o senhor, Ivan Aleksêievitch…

– Estou escutando.

– Talvez o senhor ache estranho… O senhor vai se admirar, mas pouco me importa…

Elevando os ombros novamente, Ogniov preparou-se para ouvir.

– É o seguinte – começou Vérotchka, inclinando a cabeça e revirando nos dedos um pompom do xale. – Sabe, o que eu queria lhe dizer é… O senhor vai achar estranho e… tolo, mas eu… eu não posso mais.

A fala de Vera tornou-se um balbucio confuso e de repente explodiu num choro.

A moça cobriu o rosto com o xale, inclinou-se ainda mais e chorou desesperadamente. Ivan Aleksêievitch gaguejou algo, e, embaraçado e surpreso, sem saber o que dizer ou fazer, olhou desanimado ao seu redor. Ele mesmo começou a sentir uma coceira nos olhos, devido à falta de costume de lidar com choro e lágrimas.

– E essa agora! – balbuciou ele com ar perdido. – Vera Gavrílovna, por que isso agora, eu pergunto. Minha querida, a senhorita está… doente? Ou alguém a maltratou? Me conte, talvez eu possa ajudá-la…

Na tentativa de consolá-la, ele se permitiu retirar com cuidado as mãos dela do rosto. Ela lhe sorriu entre lágrimas e disse:

– Eu… eu o amo!

Essas palavras, singelas e comuns, foram ditas em simples linguagem humana, mas Ogniov, fortemente constrangido, deu as costas a Vera, levantou-se e, depois do constrangimento, seguiu-se o susto.

A tristeza, o calor e o sentimentalismo que as despedidas e a bebida haviam lhe trazido sumiram de repente, dando lugar a um incômodo sentimento de mal-estar. Era como se sua alma tivesse virado de ponta-cabeça. Ele espiou Vera com o canto do olho, e agora, depois de lhe declarar seu amor, ela se despira da inocência que tanto enfeita as mulheres; ele a achou mais baixa, simples e obscura.

“Que está acontecendo?” – pensava ele aterrorizado. “Eu a amo… ou não? Que problema!”

Depois que o mais importante e difícil finalmente fora dito, Vera já respirava livremente, com facilidade. Levantou-se também e, olhando Ivan Aleksêievitch diretamente nos olhos, começou a falar depressa, sem controle e com ardor.

Como uma pessoa que levou um susto repentino e não consegue depois lembrar a ordem em que se deram os sons da catástrofe que a deixou abalada, Ogniov não se lembrava das palavras e frases de Vera. Recordava-se apenas do conteúdo da sua fala, dela mesma e da sensação produzida pelo que ela havia dito. Lembrava-se de sua voz, que parecia estrangulada e rouca de emoção, e da música incomum e cheia de paixão de sua entonação. Chorando e rindo, com lágrimas cintilando nos cílios, ela lhe dizia que, desde os primeiros dias em que se conheceram, ele a fascinara por sua originalidade, seu brilhantismo, seus olhos bondosos e inteligentes, suas tarefas e objetivos de vida, e que ela se enamorou dele profundamente, com paixão e loucura. Disse que no verão, quando ela entrava na casa, vindo do jardim, e via no vestíbulo sua pelerine, ou quando ouvia de longe sua voz, sentia um frio no coração e um pressentimento de felicidade; até anedotas tolas dele a faziam dar gargalhadas; em cada cifra dos seus cadernos ela via algo invulgar, inteligente e grandioso; seu bastão nodoso era para ela mais belo do que as árvores.

O bosque, os flocos de neblina, as valas escuras ao lado da estrada, tudo estava quieto, como se a ouvissem, mas na alma de Ogniov acontecera algo estranho e mau… Enquanto lhe declarava seu amor, Vera estava cativantemente bela e falava bonito, com paixão, mas o que ele experimentava não era prazer, não era alegria de viver, como gostaria, e sim um sentimento de compaixão por ela, uma dor e pena porque, por causa dele, uma pessoa boa estava sofrendo. Só Deus sabe se nesse momento falou mais alto nele a racionalidade livresca, ou se manifestou-se o hábito incoercível de querer ser objetivo, que com tanta freqüência atrapalha a vida das pessoas, mas o fato é que a exaltação e o sofrimento de Vera lhe pareceram melosos, pouco sérios. Ao mesmo tempo, o sentimento se rebelava dentro dele e lhe sussurrava que tudo que ele estava vendo e ouvindo naquele momento, do ponto de vista da natureza e da felicidade pessoal, era mais importante do que quaisquer estatísticas, livros, verdades… E ele enraivecia e se culpava, embora não entendesse em que consistia a sua culpa.

Para o coroamento de sua situação embaraçosa, ele definitivamente não sabia o que dizer, e era indispensável falar alguma coisa. Pronunciar na cara “eu não a amo” estava além das suas forças, e dizer “sim” ele não podia porque, por mais que procurasse, não encontrou no seu coração nem uma chispazinha…

Ele ficou calado, enquanto ela dizia que para ela não existia felicidade maior do que vê-lo, segui-lo, naquele momento mesmo, aonde ele quisesse ir, ser sua esposa e ajudante, e que, se ele a abandonasse, ela morreria de tristeza…

– Eu não posso mais ficar aqui! – disse ela, torcendo as mãos. – Estou farta da casa, do bosque, do ar. Não suporto a calma constante, a vida sem objetivos, não suporto nossas pessoas sem cor, apagadas, tão parecidas umas com as outras como dois pingos d’água! São todas cordiais e afáveis porque estão de barriga cheia, não sofrem, não lutam… Eu quero ir exatamente para aqueles prédios úmidos, lá onde as pessoas sofrem, atormentadas pelo trabalho e pelas necessidades…

Isso também pareceu a Ogniov meloso e pouco sério. Quando Vera terminou, ele continuou sem saber o que dizer, mas ficar calado não era possível, e ele balbuciou:

– Eu, Vera Gavrílovna, estou muito grato à senhorita, embora sinta que nada fiz para merecer tal… sentimento… de sua parte… Em segundo lugar, como um homem honesto, devo lhe dizer que… a felicidade se baseia no equilíbrio, ou seja, quando ambos os lados… amam igualmente…

Porém, no mesmo instante Ogniov se envergonhou de seus balbucios e se calou. Sentiu que durante esse tempo ele estava com uma cara idiota, culpada, sem graça, tensa e forçada… Vera, com toda a certeza, soube ler a verdade no rosto dele, porque ficou séria de repente, empalideceu e baixou a cabeça.

– A senhorita me perdoe – balbuciou Ogniov, não suportando o silêncio. – Eu a respeito tanto que é até doloroso para mim!

Vera lhe deu as costas e bruscamente se dirigiu com rapidez para casa. Ogniov a seguiu.

– Não, não é preciso! – disse Vera, fazendo-lhe um sinal com a mão. – Não venha, eu vou sozinha…

– Não, de qualquer modo… não posso deixar de acompanhá-la…

Qualquer coisa que dissesse, tudo, até a mínima palavra, parecia a Ogniov abominável e sem graça. A cada passo crescia nele o sentimento de culpa. Ele se enfurecia, fechava os punhos e amaldiçoava sua frieza e inabilidade para lidar com as mulheres. Na tentativa de se estimular, ele olhava para a silhueta bonita de Vérotchka, para a sua bela trança, para as pegadas que seus pezinhos deixavam no pó da estrada, recordava suas palavras e suas lágrimas, mas tudo isso somente o deixava comovido, sem excitar seu coração. “Ah, mas não se pode amar à força!” – tentava se convencer, ao mesmo tempo em que pensava: “Mas quando será que vou amar sem ser à força? Eu já estou chegando aos trinta! Nunca encontrei uma mulher melhor do que Vera, nem vou encontrar… Oh, velhice de cão! Velhice aos trinta anos!”

Vera caminhava na frente dele, cada vez mais depressa, sem olhar para trás e de cabeça baixa. Ele tinha a impressão de que, devido à mágoa, ela estava com os ombros mais estreitos e o rosto encovado…“Faço idéia do que está acontecendo agora no espírito dela!” – pensava ele, olhando-a de costas. – “Provavelmente quer morrer de dor e vergonha! Ó Deus, quanta vida, poesia e sentido há em tudo isso, que faria comover até uma pedra, e eu fui idiota e desajeitado!”

Junto à cancela, Vera lançou-lhe uma olhada rápida, curvou-se para frente, enrolou-se no xale e caminhou apressadamente pela aléia.

Ivan Aleksêievitch ficou sozinho. Voltou para o bosque devagar, parando a toda hora e olhando para a cancela, e toda a sua figura era a expressão de que ele não estava acreditando em si mesmo. Procurava as pegadas de Vérotchka na estrada e não acreditava que a moça com quem ele tanto simpatizava acabara de lhe declarar o seu amor e que ele, de modo tão desajeitado e tosco, “a recusara”! Pela primeira vez na vida, foi obrigado a se convencer por experiência própria de que uma pessoa depende muito pouco de sua vontade, e experimentou em si mesmo estar na situação de uma pessoa decente e afetuosa que, contra seu desejo, causou ao seu próximo sofrimentos cruéis e imerecidos.

Ele estava com a consciência pesada e, quando Vera sumiu da sua vista, pareceu-lhe que tinha perdido algo muito caro e próximo que ele não voltaria a encontrar. Sentia que, com Vera, escapara dele uma parte de sua juventude e que os momentos que ele passara de maneira tão infecunda não se repetiriam mais.

Chegando à ponte, ele parou e ficou pensando. Queria encontrar a causa de sua estranha frieza. Que essa causa não estava fora, e sim dentro dele, estava claro.

Reconhecia sinceramente para si mesmo que essa não era uma frieza racional, da qual tão freqüentemente se gabam pessoas inteligentes; não era uma frieza de tolo egoísta, mas simplesmente a impotência da alma, a incapacidade de assimilar profundamente a beleza; uma velhice precoce, adquirida por meio da educação, da luta desordenada por um pedaço de pão, da vida sem família num quarto alugado.

Da pontezinha ele caminhou lentamente, como que contra a vontade, para o bosque. Lá, na negra escuridão, onde aqui e ali se destacavam nítidas manchas de luar, onde ele não percebia nada além dos próprios pensamentos, sentiu um desejo terrível de recuperar o que havia perdido.

Ivan Aleksêievitch se recorda de que retornou à casa. Encorajando-se com suas lembranças, esforçando-se para desenhar Vera na imaginação, ele caminhava rapidamente em direção ao jardim. Na estrada e no jardim já não havia bruma, a lua branca olhava do céu, como se tivesse sido lavada, e apenas no oriente havia nuvens sombrias… Ogniov se recorda de seus passos cautelosos, das janelas escuras, do espesso aroma de heliotrópio e resedá. Karô, um cachorro que ele conhecia, abanou o rabo amistosamente, aproximou-se e cheirou sua mão… Foi o único ser vivo que o viu dar duas voltas em torno da casa, parar embaixo da janela de Vera e depois, fazendo um gesto de desistência com a mão, dar um suspiro profundo e deixar o jardim.

Uma hora mais tarde, ele estava na cidadezinha e, exausto, quebrado, apoiando o tronco e o rosto febril no portão da estalagem, batia com a alça de ferro. Em algum lugar da cidade, um cachorro soltava uns latidos sonolentos e, como que em resposta às suas batidas, perto da igreja alguém golpeou uma placa de metal.

– Fica perambulando à noite… – resmungou o velho-crente, dono da estalagem, vestido com uma camisola comprida que parecia de mulher, enquanto abria para ele o portão. – Em vez de perambular, fazia melhor se rezasse a Deus.

Ivan Aleksêievitch entrou no seu quarto, caiu na cama e durante muito tempo ficou olhando para o fogo; depois sacudiu a cabeça e foi fazer as malas…

195 Visualizações