Os nervos – Anton Tchekhov

By | July 30, 2022

O arquiteto Dmitri Osipovitch Vaksin, que regressou da cidade para sua casa de campo, acha-se impressionado pela sessão espírita a que assistiu. Ao despir-se para deitar-se em seu leito solitário (pois sua mulher foi ao santuário de São Sérgio), Vaksin vai recordando tudo quanto acabou de ver e ouvir. Falando claro, não foi uma verdadeira sessão espírita: a noitada passou-se em conversações tétricas. Uma senhorita começou falando em adivinhação do pensamento. Daí passaram para os espiritos, para os fantasmas; das aparições para os enterrados vivos… Um senhor leu a história de um morto que se revirou no caixão. Vaksin pediu um instrumento de percussão e demonstrou às senhoritas como proceder para comunicar-se com os espíritos. Chamou seu tio Klavdi Mironovitch e perguntou-lhe, mentalmente, se não seria melhor na ocasião pôr a casa em nome de sua mulher. Ao que o tio respondeu: “Prever sempre é bom.”

— Há muitas coisas misteriosas… e temíveis, na Natureza — refletia Vaksin cobrindo-se com o cobertor. — Não são os mortos que assustam: é a incerteza…

Soa uma hora da manhã. Vaksin vira-se para o outro lado e lança um olhar à luzinha azul da lamparina de azeite. A luzinha cintila e apenas alumia os cantos e o retrato do tio Klavdi Mironovitch, colocado na parede, em frente à cama.

— Que faria, se nesta penumbra me aparecesse o espírito de meu tio? — pensou Vaksin. — Não, são bobagens, isso não pode acontecer! Os fantasmas são invencionices de gente ignorante…

Todavia, Vaksin cobre a cabeça com o lençol e fecha os olhos. Desfilam-lhe pela imaginação o morto que se remexe no caixão, a falecida sogra, um companheiro enforcado, uma jovem afogada… Vaksin procura pensar em outras coisas, porem seus esforços são inuteis. Seus pensamentos avolumam-se mais fantásticos, mais embrulhados. O pavor o oprime.

— Que diabo! Tenho medo como um menino!… É vergonhoso!

Tique-taque, tique-taque; ouve-se o barulho do relogio atrás da parede. Na igreja do lugar batem os sinos, um toque lento… triste… Vaksin sente um frio correndo-lhe pela espinha, pela nuca. Tem a impressão de que alguém respira a seu lado. Parece-lhe que o tio sai da moldura e se inclina sobre ele… Tem um medo invencivel. Aperta os dentes, prende a respiração. Por fim, quando pela janela aberta entra zumbindo um inseto, não agüenta mais e toca desesperadamente a campaínha.

— Dmitri Osipovitch, que deseja o senhor? — diz ao cabo de alguns minutos a voz da governanta alemã.

— É você, Rosália Carlovna? — diz Vaksin com alegria. — Por que você se incomodou? Gravile poderia…

— Gravile foi com sua permissão ao povoado. A pequena tambem saiu… Não há mais ninguém em casa… Mas, que deseja o senhor?

— Eu queria… Mas, entre!… não se acanhe, está escuro… — A gorda e rubicunda alemã entra no dormitorio e para, à espera da explicação.

— Sente-se por um momento… Verá de que se trata… “Sobre o que a posso interrogar?” — pensa Vaksin, olhando de revés o retrato do tio e sentindo tranqüilizarem-se-lhe os nervos. — Queria pedir-lhe… que, amanhã, quando o criado for à cidade… lembre-o para trazer cigarros… Mas sente-se!

— Deseja alguma coisa mais?

— Sim, quero… não quero nada… Mas, por que não se senta? (Pensarei ainda outra coisa).

— Não é decente para uma senhorita permanecer no quarto de um cavalheiro… E percebo, senhor, a sua brincadeira… compreendo… Por causa de cigarros não se desperta ninguém… compreendo…

Rosália Carlovna sai do quarto. Vaksin, já tranqüilizado pela conversa e envergonhado de sua covardia, cobre a cabeça com o lençol e fecha os olhos. Passam-se uns dez minutos relativamente suportaveis, mas logo se repetem as mesmas coisas. Tateando, procura os fósforos; acende a vela sem abrir os olhos. Contudo, a claridade não lhe arrefece o medo. Sua imaginação perturbada vê o tio revirar os olhos e alguém espreitá-lo de um dos cantos da parede.

— Chamá-la-ei outra vez! Que o diabo a carregue!… — diz Vaksin. — Direi que estou mal… Pedirei remédios…

Vaksin toca a campainha. Não obtém resposta. Chama outra vez, e somente respondem os sinos da igreja. Preso de terror cego, sai como louco da alcova e, benzendo-se, dispara, pelo corredor, para o quarto da governanta. Está descalço e em trajes menores.

— Rosália Carlovna! — chama com voz tremula. — Rosália Carlovna! Você dorme? Estou… estou doente…

Ninguém responde. O silêncio é completo.

— Peço-lhe, compreende? peço-lhe. Para que tantos melindres? Não entendo… e além disso se alguém está doente… Em sua idade e tão escrupulosa…

— Direi à sua senhora… Deixe-me em paz! Sou uma moça honrada!… Quando eu servia em casa do Barão Anzig e o Barão quis entrar em meu quarto procurando fósforos, compreendi tudo… Imediatamente compreendi que fósforos procurava e avisei a baronesa… Sou uma moça honesta…

— Que tenho eu que ver com sua honestidade! Estou doente… e quero umas gotas… entende? Estou mal…

— Sua senhora é uma boa mulher, honrada; o senhor deve amá-la. Sim! É uma pessoa nobre! Não tenho intenção de ser sua rival.

— Estúpida! Você é uma estúpida! Compreende-me? Vaksin recosta-se na ombreira da porta, cruza os braços, e assim fica, à espera que o medo se vá. Não tem forças para voltar ao quarto e ver aquela luzinha brilhante e o retrato do tio. Tambem não lhe é possivel ficar meio nu no corredor. O medo não o abandona. O corredor está escuro e tem quase a certeza de que em cada canto alguma coisa terrivel o espera. Volta o rosto para a parede e, ao fazê-lo, parece-lhe que tiraram a sua camisa e lhe batem no ombro.

— Demônio!… Rosália Carlovna! Nenhuma resposta. Vaksin, indeciso, entreabre a porta e lança um olhar ao quarto. A virtuosa alemã dorme tranqüilamente. Uma lamparina ilumina os relevos de seu corpo maciço. Vaksin entra e senta-se no baú ao lado da porta. A presença de um ser vivo, mesmo dormindo, o tranqüiliza; sente-se aliviado.

— Que durma a tonta! Ficarei aqui até que amanheça e então irei embora… Agora amanhece cedo…

Esperando a luz do dia, Vaksin encolhe os pés, põe a mão debaixo da cabeça e fica refletindo: “Cuidado com os nervos!… Eu, homem culto, instruido, tenho medo… medo como uma criança… Que vergonha!”.

Pouco a pouco, ouvindo a respiração monótona de Rosália Carlovna, acalma-se completamente.

Às seis horas, a senhora Vaksin, ao voltar de sua peregrinação, entra no dormitório e, ali não encontrando o marido, vai ao quarto da alemã a fim de pedir-lhe dinheiro trocado para pagar o carro. Ao entrar, depara com o seguinte quadro: Rosália Carlovna, sufocada de calor, dorme em sua cama e, a um metro dela, acocorado no baú, seu marido ronca docemente, descalço e em trajes menores. Que fez a mulher e qual a cara do marido ao despertar, que outros descrevam. Estou esgotado e baixo as armas.

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